A força da palavra: Araruama Literária celebra arte, cultura e educação
- AEC
- 30 de mai.
- 9 min de leitura
O evento movimentou o centro da cidade com palestras, apresentações artísticas e ações socioeducativas, reforçando o papel da arte e da cultura como ferramenta de diálogo e transformação
Matéria por: Hellen Paixão , Kamila Rossi e Heleine Veras.
Foto/Reprodução: Hellen Paixão
Neste final de semana, a Praça Menino João Hélio, em Araruama, se transformou em um verdadeiro palco de arte, cultura e resistência. A edição de 2025 da Araruama Literária aconteceu nos dias 23, 24, 25 e 26 de maio, reunindo autores, artistas, educadores e moradores em uma programação que além de ser um convite para embarcar no mundo dos livros, integrou literatura, música e debates sobre temas fundamentais para a sociedade. Com entrada gratuita, a 4ª edição da feira literária contou com espaços recreativos, interativos, stands de livros, peças de teatro, apresentações de dança e palestras ao longo dos quatro dias de evento. Além disso, uma das grandes novidades deste ano foi a disponibilização de vouchers de R$100 e R$200 para alunos e professores da rede pública de ensino, iniciativa que facilitou o acesso ao acervo e às atividades, fortalecendo o compromisso com a democratização da cultura e da educação.
“A gente tem um termômetro sempre de uma feira para a outra. Como foi uma feira? E o que que a gente pode melhorar? O que que a gente consegue aprimorar? […] A prefeita Daniela Soares conseguiu que a gente desse voucher para todos os professores e educadores da rede. E isso foi um diferencial, a feira acabou crescendo ainda mais.” comenta Luciane Saraiva, idealizadora da feira literária de Araruama, que também compartilhou insights sobre o processo de elaboração do evento:
“O que a gente percebeu com a 4ª edição do nosso evento, 4ª edição do Araruama Literária, com o tema “A leitura nos transporta para todos os mundos”, era que esses mundos poderiam ser aqui representados. Aí a gente criou o mundo de Nárnia, o mundo da matemática, o mundo dos cubos mágicos, o mundo do xadrez, o mundo dos contos de fadas, das crônicas, do teatro, da cultura, da arte, tudo aqui representado.”
Confira a programação completa e os destaques de cada dia:
Sexta-Feira (23/05)
No dia de abertura da feira, a tenda principal contou com a presença de Daniel Munduruku e Arassari Pataxó, representantes de povos indígenas, numa roda de conversa sobre “Identidade e território: povos silenciados pelo colonialismo e eurocentrismo”, mediada pela pedagoga Tayná Álvares. Ambos destacaram a importância de valorizar os saberes ancestrais e denunciar os impactos do colonialismo, reforçando o papel da arte e da literatura como formas de resistência e preservação cultural. Mais tarde, foi a vez do autor Fabrício Carpinejar se juntar ao rapper e ativista social MV Bill para debater sobre “A educação como processo de emancipação e mobilidade social", com mediação do professor André Narcizo. Durante o encontro, os dois compartilharam vivências pessoais e destacaram como a educação pode romper ciclos de exclusão.
Enquanto isso, o Teatro Municipal recebia produções como “Os Saltimbancos” (Quatro Cinco), “João e Maria e a Casa de Chocolate” (Cia. In Focus), “O homem que engoliu um chip” (Ramon Nunes Mello) e “Pret-O-Conceito”. O grupo de teatro local, Gene Insanno, foi o responsável pela produção desta última, que aborda o racismo como tema. Em conversa com a roteirista Anilia Francisca, o diretor Leonardo Gall e a atriz Manuela Valente, eles falam sobre a importância da visibilidade do tema em eventos e o cuidado ao retratar tópicos sensíveis.
“A gente já vive um racismo estrutural. As pessoas às vezes são racistas e não “percebem” que estão sendo racistas porque já transpassa aquele ser vivente. Ou seja, a gente vem pra incomodar um pouco também, né? Por que não? Acho que o teatro é isso, o teatro tem que servir também pra incomodar.” afirmou Leonardo.
“É claro que algumas palavras doem. Elas são ofensivas, mas é pra doer mesmo. E é pra pessoa poder perceber como é que aquilo é olhado de fora. […] Falar sobre isso é uma coisa que realmente eu fico sempre com muito cuidado. Justamente pra poder tentar contemplar todas as pessoas, inclusive as pessoas de pele preta, sem parecer exagerado, sem cometer alguma gafe.” Anilia complementou.
Cena da peça Pret-O-Conceito. (Foto/Reprodução: YouTube/Gene Insanno)
Para Manuela, participar da montagem também significou um exercício profundo de empatia:
“Foi uma produção colaborativa com os atores. A gente levou relatos nossos. Alguns foram modificados, lidos por outras pessoas […] Você vai vendo as dores das outras pessoas, que às vezes você não sabe que aquilo acontece, não sabe onde dói. Todo mundo tem alguma questão de opressão, alguma dor ali. Mostrar isso também, que elas não estão sozinhas, eu acho que foi uma das coisas mais legais.”
Para encerrar o primeiro dia de evento, o palco principal da feira recebeu Felipe Pitta como ato de abertura da grande atração musical da noite: Seu Jorge. Mesmo com as baixas temperaturas e o clima chuvoso, o público marcou presença em peso enquanto o cantor carioca embalava a plateia ao som de hits como “Mina do Condomínio”, “Quem Não Quer Sou Eu”, “Amiga da Minha Mulher” e “Burguesinha”. Após o show, o artista desceu de seu camarim para cumprimentar fãs e tirar fotos, esbanjando simpatia e atenção ao público presente antes de seguir viagem.
Sábado (24/05)
No dia seguinte, a Tenda Principal recebeu nomes de importância regional e nacional para as rodas de conversa e palestras do segundo dia de evento. O poeta e jornalista Ramon Nunes Mello e a artista transdisciplinar Maria Caú participaram de uma roda de conversa sobre o tema “Poesia e território”, com mediação da jornalista Fernanda Santana. Durante o encontro, os convidados dialogaram sobre a importância da valorização de artistas locais. Seguindo a programação, o apresentador e jornalista Serginho Groisman e o jornalista, escritor e ativista social Manoel Soares debateram o tema “Juventude, voz e representatividade: o Brasil que fala e o Brasil que cala.”
Manoel Soares e Serginho Groisman em participação na Araruama Literária. (Foto/Reprodução: Ana Clara Burgos/Buenos Vision)
A conversa foi marcada por reflexões que evidenciaram como a palavra pode ser um meio de conscientização e mudança social. A dupla também destacou como a troca geracional de experiências é um meio de aprendizado constante e uma maneira de manter a cultura de alguém viva. Ao falar com nossa equipe de reportagem, Manoel refletiu sobre essas questões e aconselhou os futuros comunicadores:
“Quando a gente fala de cultura, cultura não é a dança, cultura não é a música. Cultura é a vida. A dança, a música é a arte. Existe uma diferença entre arte e cultura. […] Por isso que essa conexão geracional é tão importante. É a maneira de nós deixarmos claro para os nossos ancestrais que eles fizeram um bom trabalho e é a maneira como nós sobrevivemos à ausência deles em nós porque tudo passa, mas a cultura é imortal. […] Comunicação é a arte de ouvir. As pessoas acham que como comunicador você precisa ter o que falar. Se você for perito em ouvir, só ouvir e depois tentar traduzir o que você ouviu a partir da sua vivência, da sua cultura, você vai ser um ótimo comunicador.”
Adiante, com mediação da professora doutoranda Aline Botelho, a escritora, professora e linguista Conceição Evaristo apresentou a palestra com o tema: “A palavra como lugar de poder: Escrevivências e Resistências”. A mineira foi a grande homenageada desta edição da Araruama Literária, recebendo um buquê de flores da Secretária de Educação Valéria Amaral e uma moção de aplausos concedida pela Câmara Municipal de Vereadores.
Conceição Evaristo é a grande homenageada da 4ª edição da feira. (Foto/Reprodução: Ana Clara Burgos/Buenos Vision)
No espaço dedicado ao teatro, a programação da também foi recheada de atrações. Na parte da manhã, a Cia in Focus trouxe novamente para os pequenos a peça teatral “João e Maria e a Casa de Chocolate”. Em seguida, a companhia da vez foi a Teatrama, apresentando mais uma peça infantil com ”Turma da Mônica”. Na parte da tarde, a Escola de Dança Milena Pontes apresentou o espetáculo ”Luzes do Caminho”, um apanhado de momentos dos últimos 20 anos de escola. Já “O homem que engoliu um chip” foi a peça responsável por fechar o conjunto de apresentações do dia.
Na tenda com autores, conversamos com Célia Borges Couto, que expunha seus livros “Eu no Papel” e “Os Netos no Papel”. Ela comentou um pouco sobre como a acessibilidade do evento impacta na venda dos livros:
“Quanto mais movimento, melhor. Dia de chuva piora um pouquinho, e sábado é o dia que tem mais movimento. É tudo de bom.”
A noite de sábado teve início com a apresentação de Victor Bricio, responsável por animar o público antes da atração principal: Frejat. O cantor mesclou sucessos de sua carreira solo a hits já conhecidos da banda Barão Vermelho e do cantor Cazuza, encerrando a noite ao som de “Pro Dia Nascer Feliz”.
Domingo (25/05)
A manhã de domingo começou animada com uma apresentação do grupo recreativo Turma da Tia Carol na Tenda Principal, agitando as crianças e os presentes com performances musicais de personagens infantis famosos como Aladdin, Jasmine, Rapunzel, Anna, Elsa, entre outros. Na sequência, a programação mudou o foco para as mulheres, com a psicanalista e educadora Quezia Tebet e a escritora e contadora de histórias Sinara Rúbia, trazendo o tema “A Leitura como Ato de Resistência e Autoconhecimento” para uma mesa de debate. Juntas, com a mediação de Janaina Nery, aproveitaram para contar como a leitura pode contribuir para o empoderamento das mulheres, tanto no aspecto individual quanto no coletivo.
Em entrevista para o Expresso UVA, Sinara compartilhou reflexões valiosas:
“A literatura com certeza é um instrumento importante para o empoderamento das mulheres e das pessoas, de uma forma geral, mas como ela contribui para esse empoderamento? Quando ela é uma literatura de voz feminina, quando ela traz diversidade, quando ela não é pautada num padrão das mentalidades coloniais e patriarcais, quando ela vem falando desse ser feminino a partir da perspectiva da sua luta, da sua liberdade [...] Para essa literatura contribuir para o empoderamento, ela tem que ser construída a partir dessas bases e aí vamos ter uma série de critérios, mas o mais importante deles é a voz, é a voz feminina.”
Já Quezia destacou a importância dos grupos femininos na construção do empoderamento feminino:
“É resistir a uma invisibilidade e a um silenciamento que são históricos. A palavra empoderamento ficou muito perjurada, assim como feminismo. E o que é empoderamento, na prática? É você se empoderar desse processo todo de consciência através da linguagem, poder se fortalecer e passar pra outra mulher [...] Essa união juntamente com a questão da linguagem e do questionamento da cultura te empodera, em qualquer roda, em qualquer situação social você tem a oportunidade de lutar tendo consciência.”
Horas depois, o professor e historiador Leandro Karnal lotou a Tenda Principal e envolveu a multidão com sua palestra "Literatura e Humanismo: a formação do cidadão pela palavra". Karnal defendeu a literatura como um pilar essencial na construção de uma sociedade mais ética, justa e consciente. Para fechar a programação do espaço, Ramon Nunes Mello retorna para uma roda de conversa com o tema “Cazuza: o poeta do rock”, mediada pela jornalista Renata Castanho. Ramon, que colaborou com Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, na elaboração da fotobiografia do cantor, abordou a trajetória artística do músico e destacou suas contribuições para a literatura e para a música.
Já nos palcos do teatro, era encenada a peça “Por que o porquê é porquê?”, mais uma produção do grupo Gene Insanno, que também apresentou uma leitura dramatizada do livro “Teatro Teen - Sete peças adolescentes de um ato”. A programação teatral seguiu com a reexibição da peça “Os Saltimbancos”, que posteriormente deu lugar à dança. O Teatro Municipal recebeu o espetáculo de dança do Espaço Bruna Marinho, que mais uma vez mostrou que a feira vai além da literatura, abraçando também a arte por outros meios.
À noite, o cantor Juceir Júnior animou os presentes antes da grande apresentação do terceiro dia de evento. Encerrando a programação musical da feira com chave de ouro, o cantor Jorge Vercillo contagiou o público com seus clássicos atemporais como “Monalisa”, “Que Nem Maré”, entre outros, levando a plateia ao êxtase no último dia de shows.
Jorge Vercillo encerra a programação musical noturna da Araruama Literária 2025. (Foto/Reprodução: Ana Clara Burgos/Buenos Vision)
Segunda (26/05)
Pela primeira vez, a feira literária de Araruama dedicou um dia inteiro às crianças. A “Feirinha Literária” contou com atividades para os pequenos como contação de histórias, peças infantis e apresentações musicais voltadas para eles, além de espaços lúdicos e a presença de personagens já conhecidos pelo público. A programação começou cedo na Tenda Principal com a apresentação da banda Pequenos Acordes, seguida pela animação musical de Alan Quintanilha e Sônia Corecha. Ambas atrações repetiram a dose durante a tarde, agitando a criançada com muita música e dança.
Enquanto isso, na Tenda da Educação Infantil, o grupo Tapetes Contadores de Histórias garantiu boas doses de cultura e encantamento para os mais jovens. No Teatro Municipal, peças como “Turma da Mônica” e “A Cigarra e a Formiga” divertiram a plateia com histórias cheias de cor, humor e ensinamentos. O quarto e último dia da Araruama Literária foi marcado pela presença de alunos de diversas escolas e pelo clima de festa e divertimento em todos os cantos da feira.
“Para comunidade em geral, é muito importante um evento assim porque a gente tem um pouco de escassez literária em Araruama, né? E as crianças também são muito carentes em relação ao financeiro, então a prefeita deu um apoio com o voucher, para as crianças também adquirem os livros e também vamos poder utilizar com eles em sala de aula.” disse a professora Tamires Gonçalves, quando entrevistada sobre a importância desse evento para a educação.
“Tiveram também outros movimentos legais aqui, como contação de história, musicalização, isso também é feito em sala de aula, mas aqui é amplo. As crianças têm oportunidade de andar pela cidade, muitas crianças não conheciam a praça e conseguimos apresentar para elas [...] E a questão pedagógica, da leitura, é muito importante, é essencial, até porque saímos um pouco dessa questão de tecnologia, celulares, as crianças estão muito presas em telas, então conseguimos realizar muitos trabalhos legais com eles”, completou a educadora.
Ao longo de quatro dias, Araruama se transformou em um epicentro de arte, diálogo e emoção. A Araruama Literária 2025 conseguiu unir gerações em torno de histórias, reflexões, celebrações e mostrou que a leitura não acontece só nas páginas. Ela transborda para as praças, para os palcos e para o coração de quem acredita na cultura como instrumento de transformação. Uma celebração da palavra, da resistência e da identidade — que já deixa saudades e o desejo de reencontro na próxima edição.
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