A questão do tempo, de sua permanência e presentificação, é tema recorrente na obra de Kleber Mendonça Filho. Herdeiro de uma geração que foi formada fundamentalmente por cinéfilos críticos de cinema, como os jovens turcos do Cahiers du Cinéma e do Cinema Novo brasileiro, Kleber sabe bem os poderes e perigos da tradição.
Tal qual Jean-Luc Godard e Glauber Rocha, Kleber formou-se, antes da prática cinematográfica, assistindo a todos os filmes que a sua frente apareciam, mas não como Quentin Tarantino - espectador apaixonado – e sim como um analista, um pesquisador. Não sem motivo, sua partida do universo da crítica cinematográfica deu-se pela própria fagocitação desta prática na realização de seu primeiro filme de longa-metragem: Críticos.
Em sua mais recente obra, Aquarius, ele trata da permanência do passado no presente. Porém ainda, da invasão da presença do futuro. Poderíamos, de certa forma, subverter o lide jornalístico para entender quem somos indagando-nos: de onde viemos, o que fizemos, quando o fizemos, o que realizamos e por quais motivos? Esta linha de coerência é o que nos constitui e o que produz uma certa palavra: dignidade. Infelizmente, pouco utilizada em nosso tempo presente, tão sombrios economicamente, (O Capital do Séc XXI, de Thomas Piketti), politicamente (A era dos extremos de Eric Hobsbawm) e culturalmente (Culturas híbridas de Nestor Garcia Canclini).
A personagem principal do filme é Clara, uma mulher de meia-idade, que mora sozinha em um apartamento na orla da praia de Boa Viagem no Recife. A cidade, locus interessante para pensar a relação entre passado, presente e futuro, onde estes tempos teimam em co-existir, é ainda um personagem coadjuvante. Entretanto, Clara não encontra-se só. Vive, sim, acompanhada de amigos, colegas e pessoas com quem compartilha seu dia-a-dia. Vive seu presente plenamente convivendo com seu passado. Sem arrependimentos ou angústias. Seu passado está vivo e alegre. Ao contrário dos filmes de terror ou dos sintomas da mente neurótica, em que o passado é a porta por onde podem retornar os fantasmas.
Há uma certa tendência de se pensar o futuro como o momento ideal. A era de Aquárius, tão festejada nos idos dos anos de 1960 e 1970, com a revolução comportamental da contra-cultura, as conquistas em termos de liberdade sexual e moral, de acordo com astrólogos, seria o momento em que a paz universal reinaria no mundo e todos os povos em comunhão viveriam o amor pleno. Faltam ainda algumas centenas de anos para que esta época chegue, apontam os estudiosos. Utopias passadas tentando desenhar um futuro que nunca se tornou presente.
Esta cisão e projeção do ideal no futuro é algo marcado pela modernidade e em crise na pós-modernidade. O passado passou a ser visto como momento de barbárie, desumanização, violência e despreparo. Percebemos hoje que as promessas de futuro esplêndido não se realizarão se não pelas mãos dos agentes presentes. Tendo nosso contexto citado acima, pelo contrário, entendemos uma tendência forte para tais características esconjuradas para o passado, serem atualizadas. Ao final de uma das grandes obras do cinema mundial, Noite e neblina, de Alain Resnais, o autor afirma: "a guerra apenas abrandou, um olho sempre aberto". Se não observarmos as ações do presente, as barbaridades do passado serão refeitas.
Pois bem, se em Som ao Redor, Kleber aponta para a presença nefasta do passado arcaico e coronelista no Recife do presente, em Aquarius é o futuro do controle do capital sobre as almas das pessoas e do imperativo pelo lucro que devasta histórias, tradições e dignidades e lança sua sombra sobre o presente. Tempo presente sombrio que encontra em Clara, em seus amigos e pessoas do povo, luz. Re-existência. A capacidade de resistir e de se manter digna, isto é, com suas convicções e fazeres alinhados. A capacidade de resistir, no presente, a um futuro que quer alienar o passado.
Aquarius é uma ode à cultura brasileira com referências diretas a artistas corajosos e brilhantes como Taiguara, lançado ao ostracismo mesmo antes de sua morte prematura. A personagem é aficionada por música e nomeadamente por música brasileira. Não por acaso, pois talvez a música brasileira seja a nossa mais completa tradução sintética de nossa cultura. Sentados no escuro do cinema, percebemos um elogio a todos aqueles, não apenas brasileiros, que acreditam que as tecnologias e avanços materiais devem servir às pessoas e não serem usados para aumentar a exploração entre as pessoas. Contra um caráter forjado em cultura intensa, não há golpe de doença, nem física nem financeira, que dê cabo.
Por fim, indico um texto de Matheus Pichonelli publicado na revista Carta Capital, com spoilers, belíssimo: http://www.cartacapital.com.br/cultura/aquarius-e-o-dever-da-resistencia
* Percebe-se hoje uma tendência a não suportar comentários sobre filmes que contenham qualquer citação acerca do que ocorrerá na narrativa de filmes que ainda não assistimos: os chamados spoilers. De certa forma, um condicionamento ligado à ascensão das séries que tem no desejo de continuar assistindo aos próximos episódios uma das peças fundamentais de seu motor dramático. Não creio que uma obra deva ser medida pelo grau de surpresa proposta ao seu espectador e sempre vi muita graça filmes como Condenado à morte escapou de Robert Bresson, exatamente por esvaziar este lugar de ansiedade e expectativa sobre o final, para apenas fruir livremente do estilo com que a história é contada.
Entretanto, dou o braço a torcer e proponho aqui uma livre reflexão que o filme de Kleber Mendonça Filho, sem dúvida um grande cineasta brasileiro em pleno exercício da profissão, me suscitou.