Não é a primeira nem a última vez que você vai ouvir falar sobre esse assunto. “Cultura do estupro” é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens. O tema virou debate em várias redes sociais: o uso de hashtags para mobilizações online vem sendo uma ferramenta popular para a denúncia do assédio e do machismo, sendo algumas delas: #MeuPrimeiroAssedio; #MeuAmigoSecreto; #EuNãoMereçoSerEstuprada. A discussão nas redes tomou amplas proporções após a divulgação da pesquisa do Ipea sobre "Tolerância social à violência contra a mulher", no ano de 2014. Na pesquisa, alguns dados são alarmantes: cerca de 58,5% da população concorda (totalmente ou parcialmente) que se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros. Os números apontam que a maioria das pessoas acredita na mulher como responsável, de alguma forma, pelo próprio estupro.
De acordo com o livro #MeuAmigoSecreto- Feminismo além das redes (Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e Thaysa Malaquias) a cultura do estupro opera de maneiras que podem ser consideradas de escancaradas a sutis, mas perceptíveis e com efeitos reais na sociedade. Dessa forma, a cultura do estupro se materializa desde um discurso até uma piada ou cantada. O que muitas meninas ainda tem dúvida é do que de fato pode ser considerado uma situação de assédio. Para a professora Luiza Cassemiro do curso de Serviço Social da UVA Cabo Frio, assédio é uma situação de constrangimento vivenciada: "É qualquer comportamento indesejado, forçado, expressão de poder, dominação do mais forte com o mais fraco, diferente de cantada, paquera e elogio, com o objetivo de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, amedrontador, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador, como a mulher, um objeto desejo."
Uma pesquisa chamada “Chega de Fiu Fiu” elaborada pela jornalista Karin Hueck para a página feminista Think Olga demonstrou o quanto situações de assédio cotidianas em espaços públicos incomodam, deixando as mulheres com medo de andarem sozinhas nas ruas e até evitarem passar em alguns lugares. Das 7762 participantes do levantamento, 83% delas disse que não gostava de passar pela situação. De acordo com uma das ativistas do grupo "Não Me Kahlo", Bruna Rangel, existe uma conscientização muito baixa sobre o que é assédio e o que é estupro. "Os abusadores não se identificam como abusadores ou estupradores. Se você perguntar para uma menina na faculdade se ela já sofreu um abuso, ela pode dizer que não. Mas se você for listando varias coisas ela vai reconhecer que já sofreu. A menina se acha tão culpada pelo aquilo que ela sofreu que ela mesma acha que não foi estuprada. Ela mesma não entende que aquilo que ela passou foi um estupro e foi um crime.", afirma Rangel. E foi exatamente esse tipo de situação que a Agência Experimental de Comunicação (AEC) passou quando foi procurar personagens para a matéria.
Meu primeiro assédio (ou vários)
Quando surgiu a ideia de escrever uma matéria sobre assédio, juntamente veio a necessidade de dar voz a pessoas que já passaram por esse tipo de situação, além de esclarecer que a cultura do estupro se manifesta no dia a dia das mulheres. Mas, na busca por personagens, muitas meninas não conseguiam identificar que já tinham passado por uma. Ou até mesmo tinham vergonha de comentar. Depois de várias semanas, a AEC conversou com algumas meninas (que não quiseram ser identificadas) e reuniu algumas situações de assédio vivenciadas.
Carnaval
"Em um carnaval eu fui aproveitar com a minha família no bloco e eu só fiquei sentindo um cara passando a mão e eu chegando pro lado. Meu cunhado teve que intervir. Mas o homem agarrou meu braço e me puxou. E só depois de mais uma vez com o meu cunhado falando grosso de verdade o cara se afastou." N. 22 anos
Na infância
" Com sete anos eu fui estuprada pelo meu padrasto. Eu não sabia o que tava acontecendo. Isso durou cerca de um ano até minha mãe descobrir e quando ela descobriu, não denunciou ele, não fez nada. Se separou mas falou assim: olha você não vai falar isso pra ninguém e morreu o assunto. E aí depois aos 12 anos eu sofri por um tio. Ele frequenta a minha casa até hoje e ela não sabe de nada. Ninguém ia acreditar em mim. Com 15 anos eu falei pra minha mãe que eu era lésbica. E fui para uma clínica psiquiátrica porque minha mãe achava que eu era doida. Será que eu sou pelo fato de ter medo de homem ou ou porque eu realmente gosto de menina? Até hoje eu nunca me relacionei com outro homem. Hoje eu sei que realmente eu gosto de menina e não tem nada a ver com o fato de ter sofrido assédio. Você pode fazer um blog, um Facebook fake contando. Não é fácil você pegar e denunciar. Hoje eu não sei onde ele tá, se tá vivo ou se tá morto, eu não sei o que aconteceu com ele não. O meu conselho é: faça uma denuncia anônima, ligue, faça um blog e veja outras meninas que já sofreram com isso." B. 23 anos
Tio
"Meu tio sempre foi uma pessoa muito agressiva que não tinha auto controle e sempre tratava todo mundo muito mal. O comportamento dele piorou mas ele prometeu que iria procurar tratamento. Mas ele começou a me ameaçar e a minha mãe também. Eu tentei aguentar pelo fato de sermos parentes mas teve um momento que não deu mais e eu liguei para o 180 e fiz a queixa acusando ele de agressão verbal pela minha honra e a da minha família. Nunca tinha passado por uma situação parecida, ainda mais por um familiar tão próximo. Eu aconselho muito as mulheres a denunciarem. E tenho certeza de que foi por conta da denúncia que ele não fez mais nada depois." C. 21 anos
Ônibus
"Uma vez eu tava no ônibus indo pra faculdade e tava muito calor então tava de short. Sentei do lado de um cara e quando tava quase no meu ponto ele subiu a mão pra minha perna. A minha sorte foi que chegou o meu ponto. Eu levantei e sai correndo. Fiquei muito assustada." K. 20 anos
Short
"Uma vez eu sai com um short que realmente eu achei que estava meio apertado mas eu já tava atrasada . Ai eu andei pra casa de uma amiga, por onde passo por uma avenida, e carros buzinaram e motoristas chamaram eu me senti constrangida e irritada. Voltei pra casa andando e troquei de roupa." O.19 anos
No trabalho
"Eu recebia mensagens de um funcionário do meu trabalho que era casado, com convites para ir a bares e restaurantes. Ele não tinha senso algum da gravidade da situação. Mandava mensagens para o meu celular e Facebook do tipo "cadê você, porque não me responde, quero que saia comigo" em horários nada apropriados como se eu fosse intimada a aceitar. Eu não tinha a menor intenção de dar esse tipo de confiança a nenhum funcionário, mas ele não respeitava meu espaço. Tive que ter pulso firme, ameaçando deixar que meu namorado tirasse satisfação. Depois disso ele ficou com medo de ser exposto no trabalho e me deixou em paz. Agora, todo tipo de informação que necessito do setor dele para realizar meus trabalhos, preciso descobrir por mim mesma, pois ele não me passa nenhuma, acabou criando esse conflito dentro do ambiente de trabalho. Ele tem uns 47 anos e é casado e tem filhos." Z. 22 anos
Até dormindo
"Eu tinha 17 anos na época e o meu 'amigo' 25. Estava em um sítio com uns amigos bebendo e acabei dormindo no sofá porque tinha bebido muito. Acordei com esse amigo abrindo a minha calça e enfiando a mão dentro de mim. Chutei ele, e ele acabou saindo do sofá. Contei para uma prima minha, mas como ela era amiga do garoto acabou não dando bola para isso e preferi não contar para mais ninguém, só me afastar do grupo" Y. 23 anos
Na escola
"Já fui assediada pelo meu professor de química no ensino médio. Ele passou a mão na minha coxa e eu denunciei ele para os meus pais e eles foram para o ministério público. Meus pais foram na direção mas o diretor não soube como agir. O diretor achou que eu tinha falado sobre isso porque queria nota, sendo que eu tinha notas altíssimas. O professor foi eventualmente demitido. Eu nunca fiquei sabendo o que aconteceu nesse caso. Na época meus pais queriam que eu mantivesse segredo, com medo de que eu fosse exposta. Hoje eu falo porque tem que falar mesmo" I. 22 anos
Na Universidade
"Eu estava conversando com pessoas, divulgando um projeto social na Universidade. Até que fui falar com dois meninos que não prestaram atenção em nada do que eu falava. Eu sentia eles me analisando, olhando pro meu corpo de cima a baixo o tempo inteiro. E aí quando eu fui embora eles berraram bem altos comentários sobre a minha bunda de uma maneira que eu pudesse escutar. Eu me senti exposta." P. 23 anos
Não vamos ficar caladas
De acordo com Cassemiro, uma boa resposta para tentar acabar com a cultura do estupro é a importância de trazer uma reflexão acerca dos vínculos entre política e violência e a necessidade de uma política pública de segurança voltada para os direitos das mulheres: "Precisamos aumentar nossas vozes, as vítimas de estupro, abuso sexual e violência tem que ser ouvidas. Temos que ampliar o alcance do que está acontecendo, mobilizando a sociedade civil contra o apoio dos homens autores de violência e silêncio das vítimas. Vamos quebrar o SILÊNCIO.". Desde a divulgação da pesquisa do Ipea, vários youtubers e formadores de opinião divulgaram a sua opinião sobre o assunto, incentivando principalmente as denúncias. A youtuber Júlia Tolezano, mais conhecida como Jout Jout, colocou um vídeo em seu canal (JoutJout Prazer) expondo a relevância do assunto. O vídeo de título "Vamos fazer um escândalo" continha em sua descrição palavras de apoio a vítimas de assédio e estupro: "Estamos vivendo uma cultura do estupro, sim, não tem como negar. Já não dá pra ficar em silêncio, com vergonha, não querendo incomodar. A pessoa que mais pode te defender é você. Chega de ter medo. Mas se ainda assim você tiver, calma, estamos aqui pra te ajudar." O vídeo já alcançou cerca de mais de um milhão de visualizações.
No ambiente universitário várias meninas relatam que já passaram por diversas situações de assédio. Uma pesquisa de Violência contra a Mulher no Ambiente Universitário realizada em 2015 pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular, mostra que dos 1823 universitários brasileiros (de ambos os sexos) entrevistados pela pesquisa, 46% conhecem casos de alunas que sofreram violência sexual em festas, competições, trotes e nas dependências da universidade – 28% das mulheres foram vítimas desse tipo de violência, das quais 11% sofreram tentativa de abuso quando estavam sob o efeito de álcool. A pesquisa também mostra que 56% das estudantes já sofreram assédio no ambiente universitário e 36% já deixaram de fazer alguma atividade na universidade por medo de sofrer violência.
A ativista Rangel pontua que as alunas precisam saber o que devem fazer caso sofram algum tipo de abuso para que o medo e o tabu de se falar sobre isso seja deixado de lado. "Tem que criar mecanismos para os alunos se sentirem seguros para contar esse tipo de situação. E os alunos se organizem para fiscalizar, tomar parte e fazer um trabalho voltado para a conscientização das alunas. É muito importante a mobilização de estudantes nesse sentido.", declara Rangel.
Dentro da Universidade Veiga de Almeida, Campus Cabo Frio, a diretora acadêmica Luciana Pinheiro sinaliza que quem for assediado deve imediatamente recorrer ao coordenador do próprio curso. A diretora frisa a importância da denúncia para o combate de assédios dentro do ambiente universitário. "A cultura do estupro deve ser debatida, tanto que a gente tem feito muito trabalhos em cima disso dentro do campus Cabo Frio para que as pessoas falem.", finaliza. "Não existe uma resposta pronta: o que nós vamos fazer para acabar com a cultura do estupro. São várias coisas que precisam ser feitas, desde mudanças legislativas até mudanças culturais profundas pra gente poder um dia reverter isso.", conclui Bruna Rangel sobre o assunto. Entretanto, para além disso, o apoio para quem sofre e a desconstrução da sociedade machista também é um dos caminhos para quem sabe um dia as pesquisas sinalizarem números diferentes.
Abaixo, segue uma galeria de imagens feita pela revista Super Interessante em formato de quadrinhos sobre situações do dia a dia que fazem parte da cultura do estupro.