Artistas revitalizam o trabalho de uma das personalidades mais importantes para a cultura de Cabo Frio, mantendo vivo o seu legado.
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Imagem: Instituto Nacional do Folclore, Funarte. Antônio de Gastão - Pescador de Cabo Frio
O coletivo musical Cadê Godó, formado por Felipe Schuery e Guga Bruno com presença de diversos convidados, lançou o álbum Estação Sossego, Volume 1 em agosto de 2024 incluindo a faixa "Viagem à Lua", uma releitura da música de Antônio de Gastão. Este gesto faz parte de um movimento de revitalização para homenagear a figura icônica de Cabo Frio, que já foi reverenciada em 2023 quando os cantores Azul Puro Azul e Ivo Vargas lançaram a música "Meu Pensamento" e em 2017, quando o grupo teatral En La Barca Jornadas Teatrais apresentou o teatro documentário Antônio de Gastão – Memória é trabalho.
A história não se apaga, mais de 30 anos depois
Felipe Schuery nasceu no Rio de Janeiro, mas morou em Cabo Frio durante toda sua infância e adolescência. Aprendeu a tocar violão aos 13 anos com seu pai e já aos 15 anos entrou em sua primeira banda: A tropa do Feijão, banda de punk rock cuja demo se tornou popular em Cabo Frio. Em 1998, fundou a banda Lasciva Lula, com a formação de Chico dos Santos, Leonardo Popó e Manoel Vieira. Conforme a formação da banda foi alterando, em 2003 Felipe se juntou com Marcello Cals, Jamil Li Quasi e Guga Bruno, que se tornou guitarrista da banda até o seu fim, em 2009.
Felipe Schuery, Marcello Cals e Guga Bruno no Paço Imperial. Imagem: Lasciva Lula no Facebook, publicada em 10/02/2007.
15 anos após o fim da banda, Felipe compõe canções de ninar para seus filhos: Alice e Pedro. Ele tem a ideia de compartilhar essas composições para outras crianças e escolhe Guga Bruno como produtor fixo do coletivo, convidando também artistas como Cris Caffarelli, Katia Jorgensen, Ingrid Vieira e Pri Marinho. No dia 19 de agosto, o primeiro álbum do coletivo nomeado Estação Sossego - Vol.1 é lançado e entre as músicas está Viagem a Lua, que também aparece no disco lançado junto ao livro Antônio de Gastão - Pescador de Cabo Frio. Felipe Schuery e Bruno Guga, em entrevista com a UVA, comentam sobre a ideia de adicionar essa música ao álbum:
"Me lembro de ter me conectado com a música (do disco) desde que a ouvi. Fiz então um arranjo samba-canção e toquei-a por muitos anos, mas nunca publicamente. Mostrei para o Guga quando estávamos selecionando o repertório para o Cadê Godó, e ele fez este arranjo lindo que acabou saindo no disco que está disponível nas plataformas digitais."
"Para gravar, a ideia foi tentar manter essa delicadeza, usando elementos do chorinho, como a baixaria de violão e o cavaquinho, além de quarteto de cordas. A interpretação do Felipe é muito sensível e nostálgica, e eu fiquei muito satisfeito com o resultado, acho que fecha muito bem o EP."
Capa do álbum produzida pelo Estúdio Insólito, cujo fundador é Jamil Li Causi, baixista da banda Lasciva Lula. Imagem: Capa do álbum Estação Sossego Vol.1do coletivo musical Cadê Godó, lançado em 2024.
Além disso, Felipe também comenta sobre como é importante preservar a cultura popular de Cabo Frio e passar adiante as raízes de sua história para gerações futuras:
"Viagem à Lua" é a confirmação de que precisamos de fantasia (ir à Lua, Papai Noel), precisamos de amor ("eu vou junto com você") e precisamos de uma identidade ("mar", "luar", "pescadores", Cabo Frio!) para darmos sentido ao absurdo que é estar vivo. Cantar “Viagem à Lua" costura isso tudo e é por isso que decidi gravá-la como canção de ninar. Boto meus filhos para dormir regando, ao mesmo tempo, minhas raízes.
Cabo Frio, meu pensamento
Outro músico que homenageou Antônio de Gastão foi Azul Puro Azul. Em seu álbum "Alma de Beira da Praia", voltado para a temática praieira, ele incluiu participações de compositores de Cabo Frio, como na canção "Minhocas da Terra" com Dio Cavalcante, e "Cabo Frio, Meu Pensamento", esta última coautoria de Azul Puro Azul e Antônio de Gastão, com participação de Ivo Vargas. Azul Puro Azul em contato com Bruno Peixoto e Ricardo Gomes Lima, se aprofundou na obra de Antônio, e utilizou uma parte da música "Tontinha", com a autorização da família de Antônio, para incorporar à composição.
Azul Puro Azul também comenta sobre a importância da valorização do cenário da cultura cabofriense, deixando claro que se orgulhar de suas raízes é fundamental para a identidade da cidade.
“Quando existe a oportunidade de contar um pouco sobre a história do senhor Antônio, de realizar essa mistura com ele foi algo que sempre esteve dentro de mim, de valorizar o que é nosso... aceitar o que é de fora, aceitar as misturas, mas valorizar o que é nosso. Acho que essa que é a questão da nossa necessidade de levar nomes como Antônio de Gastão, Meri Damasceno, Silvana Lima, Clarêncio Rodrigues, Celinho Pé-de-Pato e tantos outros. É uma afirmação do poder do nosso povo, da nossa terra, uma valorização do que é nosso.”
Azul Puro Azul em seu show, no SESC de Cabo Frio. Foto: Felipe Ayres
"História de (um) pescador"
Nascido Antônio Barros da Cruz, em 1912, em Cabo Frio, cresceu em uma família simples, profundamente ligada à pesca, uma das atividades centrais da região. Desde a infância, Antônio demonstrou curiosidade e habilidade em diversas áreas, incluindo a confecção de redes de pesca, que aprendeu observando os pescadores que trabalhavam no quintal de sua casa. Ao longo dos anos, ele se tornou um mestre na arte de pescar, assumindo funções de liderança em traineiras e se tornando sócio fundador da colônia de pesca de Cabo Frio.
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Antônio de Gastão construindo uma tarrafa. Imagem: Instituto Nacional do Folclore, Funarte. Antônio de Gastão - Pescador de Cabo Frio
Apesar de suas raízes no trabalho marítimo, Antônio de Gastão transcendeu o papel de pescador. Ao mudar-se para uma região isolada da cidade, a chamada Abissínia que segundo Ricardo Gomes Lima — é o nome dado pela predominância de moradores negros e inspirado na antiga região da África, hoje conhecida como Etiópia —, ele explorou sua veia artística. Aos 16 anos, começou a modelar figuras a partir do barro das casas que sua família construía, retratando tanto seres humanos (os meninos) quanto a fauna local, especialmente pássaros. Na década de 50, alguns regiões da cidade de Cabo Frio passaram a contar com serviço de água potável, beneficiando também a Abissínia. Com isso, a valorização da região atraiu indivíduos das camadas médias da população e veranistas, o que resultou em um afluxo maciço a partir de então. Devido a essa valorização dos terrenos e à pressão do mercado imobiliário, a população de baixa renda da Abissínia foi deslocada para áreas periféricas e menos valorizadas da cidade. Esse fenômeno é comum na história do crescimento dos centros urbanos, e a Abissínia passou a ser chamada de Algodoal. No entanto, Antônio permaneceu morando no local, mantendo seu estilo de vida e sua ligação com a pesca e a restinga.
Eduardo Pimenta, Biólogo, Bacharel em Biologia Marinha atuando a mais de 20 anos na área de impactos ambientais, comentou no podcast Novidades do Passado sobre o conhecimento de Antônio de Gastão:
"A gente juntava com Antônio de Gastão e promovia algumas saídas pra dentro da restinga. E era muito interessante que a gente, naquele fervor de saber as coisas, perguntávamos: "Seu Antônio, que plantinha é essa aqui?" e ele respondia: "Pitangobaia, Bajurú", e tinha algumas vezes que ele não sabia e respondia: "plantinhazinha bonitinha mesmo"[risos], mas sempre tinha uma resposta."
Além de suas contribuições como pescador e escultor, Antônio participou ativamente da vida cultural de Cabo Frio. Ele era um músico versátil, tocando violão e pandeiro, além de interpretar canções tradicionais da região, como a chula, a tontinha e o vaz de roda. Como sambista e carnavalesco, fundou a escola de samba Tudo Azul e se destacou na cena carnavalesca da cidade.
No teatro, Antônio dirigiu peças, criou cenários e figurinos, além de compor músicas e poemas, apesar de seu limitado conhecimento formal da língua portuguesa. Segundo suas palavras em seu livro Antônio de Gastão - Pescador de Cabo Frio:
“É verso trovado. Minhas músicas, poemas é tudo assim: Eu mando bater a máquina, vou ditando, e então peço para corrigir o português, as palavras que muitas vezes não estão no dicionário. Todos apertam minha mão porque eu tenho um professor dentro da minha consciência, que vem de dom. Sou repentista, trovador. Eu faço música, tiro letra, e coloco lá na realidade."
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Fantoches feitos por Antônio de Gastão para suas peças de teatro. Imagem: Instituto Nacional do Folclore, Funarte. Antônio de Gastão - Pescador de Cabo Frio
“Ele não é sabedor, mas precisa saber”
Em uma entrevista concedida por Ricardo Gomes Lima, antropólogo formado em Ciências Sociais pela UFF, foi possível mergulhar na vida e no legado de Antônio, cuja história foi registrada no livro Antônio de Gastão – Pescador de Cabo Frio.
Ricardo, que coordenou a obra, compartilhou seu trajeto até o encontro com Antônio. Seu trabalho começou no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, onde, ao lado de Lélia Coelho Frota, realizava o projeto "Sala do Artista Popular". Nesse espaço, eram expostos objetos de arte popular, acompanhados pela história, pelos motivos e pelos métodos dos seus criadores. "Nas primeiras 15 exposições que realizamos, todos os artistas eram da Região dos Lagos", comentou Ricardo. Entre essas exposições, conheceu Amena Mayall, mediadora e peça fundamental para a comunicação entre Ricardo e Antônio, e um pilar para os artistas populares de Cabo Frio. Nas palavras do próprio Antônio:
“Amena foi o começo da vida da gente e ainda é o começo. Não tem ninguém como ela aqui não. Ela arrastou esses artistas lá do meio do mato.”
Paralelamente ao projeto de exposição dos artistas, Lélia Coelho criou outra iniciativa chamada "O Artista Popular e Seu Meio", que tinha como objetivo a publicação de livros em que os próprios artistas narravam suas histórias. E um desses livros foi dedicado a Antônio de Oliveira, um artista mineiro que vivia no Morro da Urca, no Rio de Janeiro. As peças de Antônio Oliveira eram profundamente conectadas às suas vivências pessoais, trazendo à tona memórias de infância e momentos de sua vida adulta. Para essa obra, Ricardo Gomes Lima reuniu um acervo de peças e ajudou na criação de "O Mundo Encantado, de Antônio de Oliveira", documentando a arte e a trajetória do artista.
Quando as exposições dos artistas da Região dos Lagos começaram, Antônio de Gastão se manifestou. "Ele tinha uma vontade muito grande de escrever sua própria história", comentou Ricardo. Foi a partir dessa vontade que na década de 80 surgiu a colaboração entre Ricardo, Amena Mayall e o próprio Antônio de Gastão, dando início ao que se tornaria Antônio de Gastão – Pescador de Cabo Frio.
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Amena Mayall, Ricardo Gomes Lima e Antônio de Gastão. Imagem: Instituto Nacional do Folclore, Funarte.
Ao perguntarmos a Ricardo sobre como era o dia a dia com Antônio de Gastão, ele respondeu que embora fosse rabugento, era um homem muito esperançoso com a vida e disposto a transmitir a gerações futuras todas as informações que fossem importantes a respeito de Cabo Frio e sua história.
“Ele reclamava de tudo e para ele tudo estava errado, mas ele também era uma pessoa muito alegre, muito entusiasmada com a vida. Ele tinha um entusiasmo enorme, um vigor enorme, mas também uma descrença. Porque são pessoas que não conheciam Cabo Frio que tomavam poder em Cabo Frio, que mandam e acabam com a vida de Cabo Frio, e ele se revoltava demais com essas coisas... Ele tinha necessidade de botar essas coisas no papel, para que a história dos construtores efetivos de Cabo Frio, que eram os pescadores, não se apagasse.”
O projeto não apenas registraria sua vida e obra, mas também o rico panorama cultural de Cabo Frio, visto pelos olhos de um dos seus maiores representantes. O projeto enfrentou adversidades que quase o levaram ao fim, e uma delas foi a luta de Antônio contra o câncer.:
“Ele se preocupava mais com a memória de Cabo Frio do que com a saúde dele, do que o câncer dele, sabe? Porque eu percebia, a gente levou anos nesse trabalho e eu o via definhando ao longo dos anos. Ele estava ficando fraco, e não conseguíamos passar um dia caminhando na restinga no sol de 50 graus.”
Antônio estava muito velho para continuar a pescar, mas usou seu conhecimento tradicional para atuar na militância ecológica, integrando grupos de defesa do ecossistema e guiando excursões à Restinga de Mossambaba, que passava por um processo de destruição. Além disso, em 1986, Amena Mayall faleceu e Antônio começa a considerar a desistência do projeto:
“Esse trabalho todo eu consegui dar início porque eu tinha a Amena Mayall, que no início ele (Antônio) recusou, não queria que eu participasse. E isso foi primordial, porque a gente estava na fase da edição do livro, de compor o livro, quando a Amena morreu. Ele não queria continuar, quis desistir, porque era o grande projeto de vida dele com ela. E foi preciso eu ter calma, deixar passar. Até eu conseguir convencê-lo que, em nome da Amena, tínhamos um compromisso de escrever o livro.”
O livro Antônio de Gastão, Pescador de Cabo Frio foi publicado em 1989, trazendo fotos, ilustrações, mapas de Cabo Frio, suas restingas e seus mares, e um disco com composições de Antônio, além de canções tradicionais da região. Alguns meses depois, em 1990, Antônio de Gastão veio a falecer, mas teve a chance de ler sua própria biografia antes de sua partida.
Apesar de suas preocupações sobre o esquecimento da identidade de Cabo Frio, Antônio ainda vive nas lembranças de artistas e cidadãos e prova que, nas palavras de Felipe Schuery,
"Preservar e passar adiante a cultura popular de Cabo Frio é valorizar nossa ancestralidade, é destacar aqueles que contribuíram para este lugar ser o que é."
Embora ruas sejam construídas, prédios sejam levantados, e patrimônios sejam destruídos, a arte popular sempre resistirá, sempre respeitará e propagará a história daqueles que amaram Cabo Frio até o fim. Pescadores. Artistas. Para sempre Cabofrienses.
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